domingo, 10 de setembro de 2006

E a malta a pensar mal da Floribella

Retirado do Aspirina B


"Floribella estraga-se


Quando me apercebi de que «Floribella» era uma série de sucesso, o linguista em mim entrou em êxtase. Portugal inteiro poderia transformar-se num grande laboratório linguístico. Muito concretamente, podia dar-se o caso de a pronúncia nortenha de Flor levar a desacelerar processos activos na nossa fala. Quem sabe se, mesmo, inverter um ou outro.

Luciana Abreu dizia «primêiro», não «primâiro». Dizia «dôu», não «dô». Isso era um novidade em ficção televisiva nacional, decerto em personagem de relevo. Os dois ditongos «êi» e «ôu» vêm da Alta Idade Média, tendo-se formado no Noroeste peninsular acima do Douro (do «Dôuro», claro). Para sermos mais exactos: são invenções galegas puro-sangue. Foram, mais tarde, levados assim para o Brasil, onde se mantêm.

Em Portugal, os dois ditongos sofreram, em séculos recentes, transformações no Sul. Assim, «ôu» deixou de ser ditongo para passar a simples vogal, «ô». (Uma interessante hipercorrecção a Sul - as hipercorrecções são sempre reveladoras - é grafar-se «poude» para reproduzir a pronúncia «pôde»). O ditongo é ainda hoje audível acima do Mondego, mas isso cada vez menos, e aceleradamente.

O caso de «êi» foi diferente. Poderia ter-se vocalizado em «ê» (e, na realidade, nós, os alentejanos, fizemo-lo), mas o eixo Coimbra-Lisboa resolveu a coisa diferentemente, modificando o ditongo para «âi». E o processo continua, aproximando-se da pronúncia «ái». Por vezes, numa série portuguesa, não percebemos se a personagem diz «Sei», ou «Sai!». E em alguns locutores é difícil saber se os trabalhadores apresentaram «queixas», ou «caixas».

Ora, que aconteceu a Floribella, a linda mocinha de Gaia? O «êi» mantém-se-lhe. Veremos por quanto tempo ainda. (Tempo, decerto, haverá, já que os autores do script vêem jeito de, a cada episódio, evitarem cinco vezes, in extremis, o final da série. Isso diverte imenso a pequenada, que adora quiproquós, e que lhe contem, cem vezes que seja, as mesmas histórias). Mas o «ôu» de Luciana, ao fim de uns meses de ambiente meridional, já se perdeu na maioria dos casos.

É isso. Do empolgante laboratório nacional, resta o deprimente condicionamento de Luciana Abreu. A norma de Lisboa soma vitórias, e uma delas está em ecrã todas as noites.

Restam-nos os miminhos. Esses, vá lá, parecem garantidos."

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